castelo

A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

“A grande formosura da alma e a grande capacidade” (1M 1,1)

Frei Javier Sancho Fermín

O conhecimento da vida íntima da alma, graças à “experiência dos místicos”, abre-nos a um mundo que, de outro modo, permaneceria por demais desconhecido. Mesmo no conhecimento de si própria, a pessoa que quiser chegar ao mais profundo centro do seu ser, do sentido da vida e da sua liberdade, necessita percorrer um caminho que passa pela interiorização. A filósofa fenomenóloga, Edith Stein, discípula e assistente de Husserl na universidade de Freiburg, afirmava: “Não é possível, no entanto, oferecer um quadro preciso da alma – nem mesmo superficial e deficiente – sem antes falar daquilo que compõe a sua vida íntima. Para tanto, as experiências fundamentais sobre as que devemos fundar-nos são os testemunhos dos grandes místicos da vida de oração. E neste nível, o Castelo Interior revela-se insuperável: quer seja pela experiência interior da Autora, que no momento em que escreve já atingira o mais alto grau da vida mística; quer seja pela sua extraordinária capacidade de expressar em termos inteligíveis suas vivências interiores, ao ponto de tornar-se claro e evidente o inefável, e carimbado com o selo da mais alta veracidade; quer seja pela força que permite compreender o seu nexo interior e apresenta o conjunto em uma acabada obra de arte”1. Nossa atenção ira centrar-se precisamente nesta obra das Moradas, com o intuito de assinalar umas linhas mestras e fundamentais na compreensão que Teresa de Jesus nos oferece do homem concreto, não em chave teórica, mas experiencial 2.

1 - Ponto de partida: o conhecimento e experiência da própria humanidade

É por demais conhecido que Teresa de Jesus foi mulher presente ao seu tempo, ao seu ambiente, e à sua realidade histórica. Embora sendo “monja de clausura” teve ampla notícia do como se desenvolvia a vida, não apenas no seu entorno familiar, monacal ou social, mas também recebeu informação sobre os acontecimentos da vida social, política e religiosa da Espanha de Carlos V e Felipe II, do mesmo modo que de fora da Espanha, tanto no âmbito europeu, com as suas mudanças e guerras de religião, quanto no âmbito das Américas, a través das notícias diretas recebidas dos seus irmãos, emigrantes no Novo Mundo atrás da fortuna, ou a través dos relatos de missionários que traziam maiores detalhes de quanto ali estava acontecendo 

De fato, Teresa não parece ficar indiferente diante das muitas “barbáries” cometidas tanto num lugar quanto no outro. Realidades que não só lhe causam preocupação e que ela censura, mas que também são ocasião para questionar-se sobre as causas ou razão última do porquê tudo isso está acontecendo. Em carta ao seu irmão Lourenço, por aquele então vivendo em Quito (Equador), Teresa diz: “... isto é o que muito me faz sofrer: o considerar quantas se perdem, em particular esses índios que não me custam pouco. O Senhor lhes dê luz. Por aqui, como por lá, há muita desventura. Como ando por tantos lugares e muitas pessoas me falam, não sei muitas vezes o que pensar, senão que somos piores que animais, pois não entendemos a grande dignidade da nossa alma, rebaixando-a a coisas tão baixas como são as da terra. O Senhor nos dê luz”4

“Não entendemos a dignidade da nossa alma”. Para esta afirmação confluem todas as situações de injustiça que regem o funcionamento da sociedade humana. Pode-se falar de muitas causas e razões, porém, no fundo, todas elas acabam por apontar a esse princípio: em última instância, a razão do comportamento está condicionada pelo modo como nos enxergamos a nós mesmos e, em consequência, como percebemos os outros seres humanos. Estamos diante de uma causa que tem suas raízes no próprio homem: no desconhecimento que tem do seu próprio ser, daquilo que confere o verdadeiro sentido e fundamenta a sua dignidade. Não surpreende que Teresa afirme que somos “piores que animais”.

Na identificação do fundamento, já intuído por Teresa no século XVI, hoje as ciências humanas acabam concordando com ela. Assim por exemplo, desde a psicologia transpessoal entende-se o crescimento pessoal como um processo de “autoconstrução” e “autorreconhecimento” enquanto indivíduo em relação, está convencido de que “a recuperação desses valores universais que devem ser “vividos” e não pensados de maneira intelectual, pode realizar-se mediante - o que o autor denomina - as “quatro portas para transcender o eu”. Nelas se resumem os diferentes caminhos espirituais que foram explorados pelos sábios e místicos de todos os tempos”5. E desde a antropologia, por exemplo o Dr. Pedro Cerezo Galán, não poupa palavras para asseverar que “no livro da Vida (de Santa Teresa de Jesus) está a ata de nascimento da intimidade moderna”6

O fato de Teresa e muitas das diversas correntes de pensamento atuais apontarem para a necessidade de resgatar a “dignidade da pessoa humana” nos situam na linha do desenvolvimento deste artigo. Da mão de Teresa de Jesus, e desde tudo quanto foi o seu caminho experiencial, trataremos de identificar aquilo sobre o qual ela consegue fundamentar a dignidade inalienável do ser humano. É provável que nenhuma tendência humanista seja capaz, em si mesma, de conferir a tais termos a compreensão do ser humano enquanto à sua riqueza e valor infinitos. Vamos descobrir como o caminho da mística acaba por fundamentar e fundamentar-se na descoberta do ser humano enquanto ser único e insubstituível.

Por isso, também não surpreende que a psicologia coincida com Teresa de Jesus ao destacar - tal e como iremos apresentando - que a pedra angular sobre a que se ergue a edificação da pessoa e a sua felicidade é o conhecimento de si própria, e a conseguinte aceitação da própria verdade. Falar de conhecimento de si ou falar do próprio conhecimento é adentrar-se em um tema que atinge a todos nós de modo profundamente existencial. E por muitos que forem os anos da nossa vida nunca atingiremos um conhecimento próprio total e exaustivo do nosso ser e da nossa personalidade. Trata-se do mistério que envolve sempre e continuadamente a vida do ser humano. Do grau de conhecimento próprio que atingirmos depende - segundo o pensamento da grande maioria das escolas atuais de psicologia - tudo o quase tudo em nossa existência. E, o que é mais importante: é disso que depende a nossa realização como pessoas felizes e satisfeitas consigo mesmas. Não é por nada que a psicologia moderna ressalta este elemento como fundamental visando a boa saúde psíquica e espiritual.

Possivelmente estamos diante de um tema fundamental, não apenas no desenvolvimento da própria pessoa, mas também enquanto à sua capacidade de relacionamento com os outros. O fato de não conhecer-se e de não aceitar-se supõe uma dificuldade enorme de cara ao sucesso das relações consigo mesmo, com os outros, com a realidade.

O conhecimento próprio acaba por constituir-se como um esteio fundamental no caminho místico e espiritual, tanto para Teresa de Jesus como para outros místicos da sua escola (João da Cruz7 ou Edith Stein8). Tudo na vida do ser humano depende desta fator: uma relação autenticamente humana com o mundo, com os outros, dependerá do grau de interioridade atingido. Estamos, pois, perante uma das chaves fundamentais do humanismo teresiano.

No momento que Teresa escreve a sua grande síntese (já ultrapassando os 60 anos de idade), o livro das Moradas, já possui um conhecimento completo de todo o caminho espiritual e uma muito bem provada experiência mística, que lhe torna capaz de desenhar todo o processo atendendo aos elementos fundamentais e primordiais do mesmo. O ponto de partida, caracterizado pela entrada decidida no caminho da meditação ou da oração mental, vem acompanhado pelo insubstituível conhecimento de si, ao qual Teresa conceder-lhe-á um rol todo particular: “antes de conceder estas graças, dá o Senhor um grande conhecimento próprio”9, quer dizer, sem conhecimento de si não há chance de adentrar-se numa duradoura e autêntica experiência mística.

Se os estudiosos da fenomenologia mística prestassem atenção a estas afirmações teresianas, certamente o seu modo de proceder e as conclusões finais seria bem diferentes. O que está em questão não é o fenômeno, mas a realização integral da pessoa, núcleo do interesse do místico autêntico. É por isso que se fala de “socratismo teresiano”, rememorando a grande intuição de Sócrates que convida: “conhece-te a ti mesmo”10

A psicologia moderna e a pedagogia não cansam de insistir na importância da aceitação de si mesmo. Sem este pressuposto as relações “ad extra” (com o mundo e com os outros) facilmente adquirem matizes doentios. Afirma-se, desde a psicologia, que o ser humano age desde a visão e compreensão que de si mesmo tem. Como poderia amar-se a si mesmo alguém que não se conhece e nem se aceita? Como seria o seu amor pelo outro? Com qual medida se defrontaria consigo mesmo? O tema não se constitui, pois, apenas como uma realidade psicológica, senão profunda e substancialmente humana, e por isso mesmo religiosa e espiritual11. Pedro Cerezo Galán, referindo-se ao papel dos místicos no tempo deles, afirma: “Porém, ao mesmo tempo, esta reforma não era arcaizante, isto é, não se produzia em oposição ao espírito do seu tempo, mas em sintonia com as novas tendências em prol da humanização do mundo e da individualização do eu, constitutivas da Renascença”12

Seria suficiente ter presente a imagem sobre a qual Teresa constrói o caminho da oração pare percebermos a importância do tema. Quando ela fala do homem (ou da alma) como sendo um castelo, e apresenta o caminho da oração como um adentrar-se nele até conquistar o centro, no fundo não faz outra coisa senão traçar um caminho místico em sintonia com o caminho de conquista-conhecimento de si. “Não sei se fui clara o bastante, porque a questão de nos conhecer é tão importante que eu gostaria que não houvesse nisso nenhuma negligência, por mais elevadas que estejais nos céus”13. Teresa nunca deixa de lado a dimensão humana do sujeito, antes parece ser um requisito para dar solidez e autenticidade ao caminho místico.

Por trás desta insistência e da importância que Teresa dá a este aspecto esconde-se uma concepção do ser humano em chave teologal e positiva. Teresa parte do princípio, fruto da sua própria experiência, de que Deus habita o centro da alma14; que não estamos vazios, mas habitados nada menos que pelo Infinito. A consequência diretamente implicada é que a pessoa humana adquire o valor do mesmo Deus. Teresa apresenta-se, destarte, como a grande humanista, porque vive convicta da dignidade do ser humano, a imagem e semelhança do próprio Deus15. A força que adquire o fundamento do conhecimento próprio no caminho místico é destacada por Teresa já no seu primeiro escrito: “... o conhecimento próprio nunca deva ser abandonado...; porque não há estado de oração tão elevado que torne desnecessário voltar ao princípio com frequência, sendo os pecados e o conhecimento próprio o pão com que todos os manjares, por mais delicados, devem ser comidos neste caminho de oração, pão sem o qual ninguém poderia se sustentar...16

É preciso assinalar, contudo, que quando Teresa fala do conhecimento próprio, certamente não está pensando numa realidade meramente cognoscitivo-psicológica. E aqui radica a genialidade da mística teresiana, que carecendo de uns pressupostos científicos sobre os que se embasa um crescimento harmônico da personalidade, a sua experiência mística de Deus abre-lhe os olhos frente a tal realidade, de tal modo que a sua mística descobre aqui um fator que não a empurra a abstrair-se da realidade humana, mas, muito pelo contrário, faz com que a pressuponha e encaminhe para a plenitude total.

O conhecimento próprio sobre o que Teresa tanto insiste é descoberta e tomada de consciência da própria realidade essencial e existencial. Mesmo centrando o olhar sobre o “eu”, o conhecimento próprio é o pressuposto que nos leva a romper com o egoísmo e a alargar o panorama do próprio mundo da alteridade. Um conhecimento próprio que se abre ao infinito do Mistério que é o único capaz de fundamentar de maneira infinita e inalienável o inquietante mistério do ser humano, que sempre inquietou a mente do pensador, quer seja filósofo ou não, que procura um sentido ou razão de ser para a existência do homem17. O fundamento que encontra Teresa para a compreensão do ser humano eleva ao máximo o sentido da sua própria dignidade. Não emerge desde uma realidade caduca, temporal, e nem mesmo trata-se de algo que deva ser-lhe dado mediante um sistema, uma instituição ou um estado. A dignidade pertence ao ser humano como sendo a sua própria natureza, razão pela qual está muito acima de ideologias ou de condicionantes temporários e históricos. Pode-se concordar ou não com a crenças religiosas de Teresa, porém ninguém pode negar que, dentro da dinâmica por ela apresentada, não pode achar-se fundamento mais sólido para o valor do ser humano.

Descobrir tal dignidade do ser humano resiste contra qualquer outra atitude negativa que pudesse vir a anular ou destruir o ser humano, quer seja porque pode perder-se na angústia da própria miséria, ou porque “faça de conta” frente a ela, para evitar ter que descobrir-se diferente dos parâmetros sociais ou idealismos pessoais (é a perigosa atitude do não aceitar-se a si mesmo).

No fundo, não se trata de outra coisa senão da atitude fundamental do ser humano que procura entender o sentida da sua existência. Acontece que, no caso de Teresa, tal sentido é visto e complementado à luz de uma compreensão teologal do ser humano que descobre-se “criatura” e não “senhor”18

Um aspecto importante que o conhecimento próprio leva atrelado a si, junto com a descoberta da própria dignidade, é o reconhecimento da dignidade do outro. Descobrindo a raiz e fundamento daquilo que confere o valor infinito ao meu próprio ser, como consequência necessária irei descobrir que tal fundamento está à base do sentido e do valor de todos ser humano, a quem já não mais poderei perceber de maneira diferente.

2 – Fundamentos da dignidade do ser humano

No apartado anterior fiz uma explanação geral sobre a centralidade do conhecimento próprio na obra teresiana e no processo espiritual e místico, tipo pedra angular sobre a qual deve ser erguida a construção toda da pessoa, em palavras tantas de Teresa tantas vezes repetidas “o que mais importa”19. Esta aproximação ajuda-nos a perceber sem margem do erro, que a compreensão que Teresa chega a atingir sobre a interioridade do ser humano não é mero resultado de umas crenças religiosas, ou de uma simples intuição de fé. Emerge ao contato mesmo com a subjetividade inerente ao ser humano.

Nos seus escritos, tal e como já acenamos, este é um tema nuclear, se bem que não lhe dedique um apartado exclusivo ou faça grandes discursos ao respeito20. Mas será sobretudo em Moradas onde emerge com toda a sua força e valor capital dentro do que poderíamos denominar o caminho de crescimento da pessoa humana (tanto desde a perspectiva antropológica como mística). A pessoa cresce na medida em que descobre e abre os olhos ao verdadeiro valor do seu próprio ser.

De fato, a colocação que acompanha o processo todo que Teresa oferece em Moradas, intuitiva e explicitamente está alicerçado no conhecimento próprio, O caminho consiste em conhecer as diversas moradas que descobertas em nosso castelo interior. Não se trata de um caminho “ad extra”, mas “ad intra”. Teresa, no esboço geral da obra já consegue que vejamos como o caminho todo identifica-se com o “processo de conhecimento próprio”. Seria possível afirmar que o dinamismo místico apresentado por Teresa em sua obra principal está embasado nisto: ajudar-nos a conhecer essa interioridade que cada um de nós somos, descobrir o que pode acontecer nela, e o que nós iremos encontrar.

Uma chamada de atenção: quem estiver familiarizado com os escritos da Santa abulense, cedo percebe a constante insistência com que ela se apresenta a si mesma: autodenomina-se mulher ruim e pecadora, destacando, qual se de um estribilho se tratasse, a sua miséria. Tais afirmações correm o rico de acabar criando no leitor a “sensação” de que Teresa tem um conceito muito negativo de si própria, e poderia leva-lo a concluir, de maneira errada, que o importante no processo é reconhecer constantemente a “própria miséria”, como se ela fosse quase que a única condição que define o sujeito.

Mas o certo é que essa conclusão, que poderia alterar substancialmente a compreensão do humanismo de base que Teresa pretende transmitir-nos, não é um elemento absoluto na compreensão que Teresa faz de si própria, e nem aquela que apresenta a respeito do ser humano em geral. Bem é verdade que a experiência da limitação, da miséria, do não gostar de si mesmo, etc..., são realidades que acompanham o processo do conhecimento próprio; porém, não se esgota aí a compreensão de quanto somos, e, menos ainda, ela é a dimensão do nosso ser que verdadeiramente nos define. Neste sentido, a dinâmica que descobrimos nas Moradas convencer-nos-á com a suficiente nitidez de que, no fundo, a visão antropológica de Teresa é, bem ao contrário, enormemente positiva.

As primeiras linhas do Castelo Interior já assim o constatam. Teresa adota como ponto de partida deste escrito, e do caminho que irá propor, a apresentação daquilo que verdadeiramente somos, aquilo que nos define: o ser humano é na sua interioridade, na sua alma (quer dizer, naquilo que sustenta e rege a sua vida), um ser de uma beleza incomparável, um ser que, longe de carecer de sentido ou de estar vazio por dentro, está habitado pelo próprio Deus; um ser, em definitivo, que é imagem e semelhança de Deus21., Em tão poucas linhas, não se pode dizer mais a respeito da grandeza e dignidade do ser humano: “para começar com algum fundamento: que é considerar nossa alma como um castelo todo de diamante, ou de cristal muito claro, onde há muitos aposentos... A bem da verdade, irmãs, não é outra coisa a alma do justo senão um paraíso onde Ele disse ter suas delícias. Pois não achais que assim será o aposento onde um Rei tão poderoso, tão sábio, tão puro, tão pleno de todos os bens se deleita? Não encontro outra coisa com que comparar a grande formosura de uma alma e a sua grande capacidade. De fato, a nossa inteligência - por aguda que seja – mal chega a compreendê-la, assim como não pode chegar a compreender Deus; pois Ele mesmo disse que nos criou à sua imagem e semelhança. Se assim é - e não há dúvida disso -, não há razão para nos cansar buscando compreender a formosura deste castelo. Pois, ainda que entre ele e Deus exista a diferença que há entre Criador e criatura - já que esse castelo é criatura -, basta que sua Majestade diga que o fez à sua imagem para que possamos entender a grande dignidade e formosura da alma”22 Não acharemos nenhum outro parágrafo em que se fundamente de maneira tão positiva e radical aquilo que define o ser humano.

Até por três vezes repete Teresa o qualificativo “formosura”. Este texto é o ponto de partida, onde plasma solenemente a sua definição e compreensão da dignidade do ser humano. De fato, o processo espiritual proposta por Teresa como fruto da sua longa experiência mística, consiste principalmente em ir aprofundando e descobrindo cada vez mais essa grande “formosura” escondida que, por “culpa nossa” tantas vezes somos incapazes de descobrir. Teresa situa aqui o núcleo da questão, e até poderíamos dizer que a razão pela qual os humanos somos tão miseráveis é porque não conhecemos a grande dignidade que carregamos. Este era o argumento para explicar o porquê de tantas injustiças. Agora retorna a ele, lamentando que malgastamos o melhor da vida por não abrirmos os olhos à nossa verdadeira condição: “Não é pequena lástima e confusão que, por nossa culpa, não nos entendamos a nós mesmos nem saibamos quem somos. Não seria grande ignorância, filhas minhas, que se perguntasse a uma pessoa quem é e ela não se conhecesse nem soubesse quem foi seu pai, sua mão ou a terra em que nasceu? Se isto seria grande insensatez, muito maior, sem comparação, é a nossa quando não procuramos saber quem somos e só nos detemos no corpo. Sabemos que a nossa alma existe apenas por alto, porque assim ouvimos dizer e assim nos diz a fé. Mas poucas vezes consideramos as riquezas existentes nessa alma, seu grande valor, quem nela habita; e assim, não damos importância a conservar sua formosura. Todos os cuidados se consomem na grosseria do engaste ou muralha deste castelo, que são os nossos corpos”23

Mas tem mais, ainda. Esta descrição que Teresa faz do ser humano, sintetiza o essencial do processo irá apresentar-nos: conhecer, resgatar e viver a grandeza do que somos. Neste sentido, desde já Teresa transmite como a sua insistência no “conhecimento de si” não se reduz a uma percepção psicologista ou simplesmente antropológica da nossa identidade, mas desde esses interrogantes existenciais podemos caminhar para uma plenitude que está ao alcance de todos, porque é o que nos define como seres humanos. E porque, além do mais, evidencia o que somos para Deus: entes com um valor sem medida, infinito e em quem Deus pôs e põe a sua confiança. Deus estabeleceu sua morada no interior de cada homem, malgrado a sua condição fraca e pecadora.

Teresa revela-se profundamente inteligente e sábia com este fundamento que estabelece para o caminho espiritual: progredir no caminho místico será um processo de humanização, pois que é no “humano” onde se encontra a grandeza do que somos e do quanto Deus nos deu e forjou em cada um de nós. Uma visão tão positiva do ser humano só pode emergir em Teresa quando, após ter percorrido o processo todo, consegue perceber que Deus nos une a Ele em nossa humanidade, porque quere elevá-la e conduzi-la à plenitude. E nesse caminho o homem adquire um protagonismo de colaboração que leva inscrito no seu próprio ser. Por isso Teresa constantemente nos convida anão ficarmos presos em “nossa miséria”, pois destarte nunca avançaremos e nem chegaremos à mora em que o Rei habita.

Este ponto de partida teresiano, que tornar-se-á ponto de chegada (cf M epílogo 3) nos situa diante da compreensão e necessidade que ela manifesta em relação com a vida mística.

Daí que o conhecimento próprio nunca chegará a ser total se a pessoa não se aproximar do mistério. Nele nos é desvelada a identidade mais profunda do que somos: “pois em nos mesmos estão grandes segredos que não entendemos”24 Para Teresa é o encontro com o Mistério quem nos conduz à uma compreensão do que verdadeiramente somos.

Ao se abrir ao Mistério, a pessoa pode chegar a um maior conhecimento de si. Porém, não se trata apenas disso, mas aprenderá a agir desde a positividade infinita que a define, em lugar de ficar na limitação de sua miséria. Assim se expressa Teresa: “... mesmo que seja o do próprio conhecimento, por mais necessário que seja. Entendam-me bem: mesmo as almas a quem o Senhor tiver chamado ao aposento íntimo em que se encontra, por mais enlevadas que ai estejam, não devem negligenciar o conhecimento próprio. Nem o poderão fazer, ainda que o queiram, porque a humildade é como uma abelha na colmeia: sempre fabrica o seu mel. Sem isto, tudo estaria perdido. Mas consideremos que a abelha não deixa de sair e voar para trazer flores. Do mesmo modo, a alma voltada para o próprio conhecimento deve voar algumas vezes, a fim de considerar a grandeza e a majestade do seu Deus. Ela constatará a sua baixeza mais do que olhando para si, libertando-se dos parasitas que entram nos primeiros aposentos, que são os do próprio conhecimento. Embora seja grande misericórdia de Deus a alma exercitar-se nisso, tanto se peca por excesso como por falta, segundo se costuma dizer. E crede nisto: com a virtude de Deus praticaremos assim melhor a virtude do que muito presas ao nosso barro25

Teresa convida a nos abrirmos ao mistério como a via que torna possível reconhecer a nossa condição mais autêntica. Fechar-nos ou esconder-nos em nós mesmos não deve entender-se, apenas, em sentido voluntarista, pois são muitos os riscos a que nos expomos se não nos abrir-nos à dimensão positiva do que somos: “Pois tudo isso lhes parece humildade, bem como outras muitas coisas que eu poderia dizer. A causa é o fato de não nos conhecermos devidamente; distorcemos o conhecimento próprio e, se nunca saímos de nós mesmos, esses e outros males devem causar-nos temor... e evitará que o nosso conhecimento próprio se torne rasteiro e covarde. Porque, embora esta seja apenas a primeira morada, é extremamente rica e de grande valor. Se escaparmos dos parasitas que nela existem, conseguiremos avançar”26

3 – A toma de consciência de nossa “grandeza” leva-nos a agir positivamente.

A consideração de quanto somos, avoluma em nós a capacidade de agir positivamente. É um princípio claro e evidente em Teresa, como já constatamos; e trata-se de um princípio hoje muito ponderado por muitas correntes e movimentos focados em ajudar ao ser humano na conquista da sua realização. Teresa, muito embora as grandes limitações que teve que sofrer em sua vida, tanto por doenças como por sua condição de mulher do século XVI, não se escondeu numa estéril lamentação, nem permitiu encolher os seus “sonhos” bem como os seus desejos de agir em consequência. Aliás, ela descobre, no entanto, que uma formiga pode realizar grandes coisas: “Oh grandeza de Deus! Como manifestais vosso poder dando ousadia a uma formiga. E como, Senhor meu, não é por vossa culpa que não fazemos grandes coisas, nós que vos amamos, mas pela nossa própria covardia e pusilanimidade! Nunca tomamos uma decisão, cheios de temores e prudência humanas e, assim, não realizais vossas grandezas e maravilhas. Quem é mais amigo de dar, se tivesse a quem, ou de receber serviços às suas próprias custas?27 E, por isso, aconselha sempre a aspirar a grandes coisas, a não amedrontar a alma: “sua Majestade deseja almas corajosas e é amigo delas, desde que sejam humildes e sempre desconfiem de si mesmas. Nunca vi quem assim age perder-se no caminho, nem uma alma covarde que, sob pretexto de humildade, percorresse em muitos anos o que as outras percorrem em pouco tempo. Causa-me forte impressão a grande importância que tem, nesse caminho, procurar grandes coisas; mesmo que não tenha forças logo, a alma vence uma enorme distância, embora, como ave de asas fracas, cansa e para”28 Estes textos manifestam, mais uma vez, o humanismo positivo subjacente a toda experiência mística autêntica.

Até agora estivemos assistindo a um contraste, e até apreciação contraditória, entre os elementos que definem o conhecimento próprio: miséria e grandeza. Ambas realidades fazem parte da verdade do que somos. Estamos perante uma moeda de duas caras, ambas formando parte do ser da pessoa, se bem que não em idênticas condições. Se prestarmos atenção à imagem usada por Teresa para descrever a pessoa humana, como um castelo de diamante ou de cristal, a condição de miséria não faz parte do castelo, é algo que está do lado de fora, com o poder de sujá-lo ou escurecê-lo, porém sem poder mudar e nem alterar a natureza do castelo. Isto significa que o que verdadeiramente nos identifica, e alvo para onde deve dirigir-se o conhecimento, é a descoberta da grandeza e formosura do próprio castelo, quer dizer, ultrapassar a visão superficial e materialista do ser humano que acaba por anular a sua verdadeira condição, quer seja no campo religioso, acentuando apenas a condição de ser pecador, quer seja no campo social, reduzindo o ser humano a quanto ele possui, produz ou consome.

Esta perspectiva é algo que vai ficando claro à medida em que nos adentramos no nosso próprio castelo e deixamos as parasitas do lado de fora: “Como estas moradas já se encontram mais perto de onde está o Rei, é grande a sua formosura, havendo coisas tão delicadas para ver e entender que o intelecto não consegue fazê-lo de modo adequado, resultando tudo bastante obscuro para os que não tem experiência. Quanto aos que já a possuem - particularmente os que a tem muita -, bem o entenderão”29

Teresa ensina a considerar o positivo do ser humano, até na descoberta da nossa miséria e pobreza: “Ó cegueira humana! Até quando, até quando permaneceremos com os olhos cheios de terra? Pois, embora entre nós não pareça ser tanta que nos cegue de todo, vejo uns argueirinhos, umas manchazinhas que, se os deixarmos crescer, bastarão para nos causar prejuízo. Pelo amor de Deus, irmãs, que isto não aconteça, mas aproveitemos essas faltas para conhecer a nossa miséria; elas nos darão uma melhor visão, como a deu o lodo ao cego que curou o nosso Esposo. Dessa forma, vendo-nos tão imperfeitas, supliquemos-Lhe continuamente que extrai bem de nossas misérias, a fim de em tudo contentarmos sua Majestade”30. Torna-se uma constante no caminho, até nos mais altos cumes da vida mística.

Poderia alegar-se, tal e como, erradamente, em ocasiões se entende, que o “conhecer-se” e apenas uma fase do caminho. Para Teresa é em nossa humanidade que deita raízes nosso verdadeiro tesouro e dignidade. E não cessará de adverti-lo com insistência, inclusive no final do escrito de “Moradas”: “Embora não se trate senão de sete moradas, cada uma delas comporta muitas outras: por baixo, por cima, dos lados, com lindos jardins, fontes e coisas tão deleitosas que desejareis desfazer-vos em louvores ao grande Deus, que criou esse castelo à sua imagem e semelhança”31

4 – A dignidade e beleza inalienáveis da pessoa

A modo de síntese, podemos concluir destacando o processo pedagógico e formativo que Teresa traça para percorrer o caminho místico. Já foi apontado antes que Teresa inicia este itinerário como se quisesse responder a uma pergunta de entrada necessária: quem é o homem? Para Teresa, ele é o fundamento ou rocha firme onde se ergue o castelo da vida da pessoa. De outro modo corre-se o perigo de começar a construir castelos no ar ou sobre areia, edificando a vida ou o sentido dela sobre realidades caducas e temporárias, devido ao que o risco de perder o horizonte torna-se permanente. Neste sentido, convém pôr em evidência tudo quanto Teresa pretende fundamentar no ser humano desde a compreensão teologal dele mesmo.

Para Teresa, a pessoa que quiser caminhar com passo firme para a sua plenitude e felicidade, deve considerar e aceitar a sua verdadeira condição, que ela define nestes três enunciados:

O homem é “Morada de Deus”32. Esta primeira imagem segunda a ordem de comparência neste escrito teresiano, ressalta não apenas um conceito muito elevado do que é o ser humano. Poderia parecer uma afirmação ingênua, como fruto de uma determinada visão religiosa do homem. Mas o certo é que tal afirmação carrega no bojo um teor bem maior do que a aparência espelha. Dizer que o homem está “habitado pelo próprio Deus”, significa afirmar que aquilo que lhe dá consistência é uma Presença, uma presença que nunca desaparece, porquanto a dignidade é valor permanente do ser humano, e que ninguém lhe pode arrebatar. É o encontro com a beleza do que somos e que nunca se perde: “Deve-se considerar aqui que a fonte, aquele sol resplandecente que está no centro da alma, não perde seu resplendor e formosura. Ele continua sempre dentro dela, e nada pode tirar-lhe o brilho33 Este princípio oferece uma visão holística do valor infinito do ser humano diante de si próprio, que nunca perde sua qualidade, mesmo quando ele achar que a perdeu. Deus permanece sempre fiel à sua criatura, motivo pelo qual o ser humano, no pensamento teresiano, tem assegurada a sua dignidade em um princípio infinito e não caduco. Isto implica, além do mais, que o ser humano, malgrado as suas deficiências, é sujeito de uma confiança constante nele da parte de Deus. Esta compreensão antropológica abre o místico à compreensão de que Deus nada espera e nada exige do homem que antes Ele não tenha dado em abundância. Isto revelar-se-á um grande desafio à vida de fé do crente: mergulhar para ver como e quem é Deus para ele. Para Teresa uma compreensão basilar do que o homem é firma-nos, ainda mais, no ser de Deus.

O homem é Imagem e Semelhança de Deus: é o conceito bíblico do homem por excelência. As implicações atreladas a esta afirmação aparecem já desde o início do livro das Moradas. Para Teresa trata-se da justificação antropológica no sentido de que a sua experiência mística tem fundamento na própria humanidade; que não se trata, então, de algo subjetivo, mas de algo que pertence ao ser que define a existência do homem e a sua razão de ser. A raiz e o fundamento da sua dignidade. A experiência mística que assume este princípio como um dogma fundamental, abre-se à descoberta nova do que o ser humano é em si mesmo.

Tudo isto fundamenta poder falar da grande dignidade e formosura da alma. Sim, é verdade que Teresa não deixa de falar da miséria, do pecado, da pequenez, da indignidade, etc... que formam parte do que é o homem. Porém, isso em modo algum esgota o seu ser. O princípio que irá reger o caminho da vida espiritual aponta para descobrir a percepção que o próprio Deus tem sobre o homem e, por isso mesmo, aponta para assumir tal princípio de credibilidade. Esta é a dimensão mais autêntica do ser humano. Não é o pecado que nos define, mas o sermos imagem; não nos define e nem esgota a limitação, mas a nossa inserção no infinito... Por isso, a pessoa humana goza da mesma dignidade de que deriva o seu ser e a sua existência. O nosso pecado, a nossa miséria... tantas vezes são freio no progresso do crescimento, porque nos estorvam no adentrar-nos no castelo onde encontramos Deus... Mas adotar como ponto de partida, não a sujeira que envolve o diamante, mas a convicção da existência desse diamante por baixa da crosta da sujeira, isso deve ser motor de uma mística viva e dinâmica, enraizada no ser do homem. Neste sentido, acredito que Teresa está totalmente certo quanto ao ponto de partida.

Esta visão, no entanto, não se encerra na compreensão daquilo que o ser humano é em si mesmo. A experiência e abertura interior ao ser, nos abre constantemente à percepção da gratuidade, da descoberta que o que me define e identifica é algo que me foi dado gratuitamente: o que, desde a perspectiva da vivência mística teresiana encontra a sua mais profunda revelação no mistério da redenção. Sentir-se redimido por Cristo: “Ó almas remidas pelo sangue de Jesus Cristo! Entendei-vos e tende dó de vós mesmas! Como é possível que, entendendo essa verdade, não procureis tirar o piche desse cristal? Olhai que, se a vida se vos acaba, jamais tornareis a gozar dessa luz. Ó Jesus! O que é ver uma alma afasta dela”34

Porém, como desde o início viemos frisando, a experiência mística não se fundamenta em verdades teóricas ou princípios, por relevantes que puderem ser. A mística autêntica se justifica desde o dinamismo de vida que assume e faz próprios tais princípios, permitindo ser por eles transformada e revitalizada. E é nessa dinâmica que se movimenta Teresa. E desde aqui podemos entender o porquê uma experiência mística autêntica e duradoura acaba por modelar na pessoa um processo de amadurecimento e de realização da própria humanidade, embora com suas deficiências e limitações.

5 – Como conclusão...

Essas verdades conhecidas pela fé e reconhecidas pela experiência, vão forjando as consequências existenciais para o ser humano e para o místico. Tais consequências nos são apresentadas por Teresa como um desafio, como uma verdadeira motivação para não renunciar a percorrer esta fascinante aventura da autêntica humanização.

Deu não pode não habitar senão em lugar primoroso; como não aventurar-nos neste caminho para a própria interioridade, e descobrir que nela encontra-se o mais valioso tesouro que podemos almejar? “Pois não achais que assim será o aposento onde um Rei tão poderoso, tão sábio, tão puro, tão pleno de todos os bens se deleita?... Se assim é, e não há dúvida disso, não há razão para nos cansar buscando compreender a formosura deste castelo...”35

Necessidade de ser consequentes com nosso autêntico ser, e tratar de aprofundar em quanto nos manifesta, especialmente em relação com o que somos no próprio interior. A consequência é que temos a obrigação de adentrar-nos, conhecer-nos, se quisermos encontrar-nos com o sentido e valor da nossa vida e alcançar a plenitude e a felicidade: “...por nossa culpa não nos entendamos a nós mesmos nem saibamos quem somos... maior é a nossa quando não procuramos saber quem somos e só nos detemos no corpo. Sabemos que a nossa alma existe apenas por alto, porque assim ouvimos dizer e porque assim nos diz a fé. Mas poucas vezes consideramos as riquezas existentes nessa alma, seu grande valor, quem nela habita; e assim não damos importância a conservar sua

formosura. Todos os cuidados se consomem na grosseria do engaste ou muralha deste castelo, que são os nossos corpos”36


No fim das contas, o caminho místico e o caminho do conhecimento e realização da nossa dignidade convergem num mesmo fim e projeto, “pois a verdade é que vejo segredos em nós mesmos que muitas vezes me espantam”37

 

1 - Edith STEIN, El Castillo interior, em Id., Obras Completas vol. III, Burgos 2007, pp. 1112-1113

2 - Certamente a compreensão e visão apresentada por Teresa sobre o ser do homem e a sua vida interior é muito mais abrangente e rica daquela que iremos desenhar nestas páginas. Nossa pretensão é aproximarmo-nos daqueles elementos que, desde a experiência de Teresa, melhor definem e concretizam o ser e a vida da pessoa humana. 

3 - Uma leitura do seu epistolário possibilita ver, bem de perto, esta imersão. Existem, ainda, claras ressonâncias da situação no Livro da Vida e em Fundações 

4 - Carta a Lourenço de Cepeda, 17 janeiro de 1570, nº 25 da ed. bras. 

5 - F. RODRÍGUEZ BERNAECHEA, Transcender el ego, em M. RODRÍGUEZ-ZAFRA, Crecimiento personal: aportaciones de Oriente y Occidente (Colección Serendipy 98), Desclée de Brower, Bilbao 2004 p. 252

6 - P. CEREZO GALÁN, La experiencia de la subjetividad en Teresa de Jesús, en La recepción de los místicos Teresa de Jesús y Juan de la Cruz, Salamanca 1997 

7 - O próprio João da Cruz, no momento de traçar o percurso completo do caminho espiritual, na sua obra mestra Cântico Espiritual, não duvida em destacar a importância do conhecimento de si mesmo - e o que isso significa – a fim de ser possível o processo de crescimento ou seguimento. Assim lemos no comentário à estrofe primeira do Cântico (CB 1,1): “Caindo a alma na conta do que está obrigada a fazer, vê como a vida é breve (Jó 14,5), e quão estreita é a senda da vida eterna (Mt 7,14), que mesmo o justo dificilmente se salva (1Pd 4,18) e que as coisas do mundo são vãs e ilusórias, pois tudo se acaba como a água corrente (2Rs 14,14), que o tempo é incerto, a conta rigorosa, a perdição muito fácil, e a salvação bem difícil; conhecendo, por outra parte, a sua enorme dívida para com Deus que lhe deu o ser a fim de que a alma pertencesse totalmente a ele, deve, por tanto, só a Deus o serviço de toda a sua vida. Em ter sido remida por ele ficou-lhe devedora de tudo, e na necessidade de corresponder ao seu amor, livre e voluntariamente, e em outro mil benefícios que se acha obrigada para com Deus...” Neste texto o Santo nos oferece uma admirável síntese dos elementos que compõem e explicam substancialmente tal conhecimento de si, um conhecimento da verdade teologal do ser humano. No comentário à estrofe quarta (CB 4), explicitamente concede ao conhecimento de si o primeiro lugar no processo espiritual. Vede, também, o 1º livro da Noite Escura (12,5)

8 - A filósofa Edith Stein dedicará ao tema belas páginas nos seus escritos antropológicos. Ao longe desta exposição reportar-nos-emos a ela em várias oportunidades. Pensamos que o seu conhecimento da espiritualidade teresiana e o seu interesse pela antropologia espiritual, ofertam a nós múltiplos elementos que complementam e esclarecem o pensamento de Teresa.

9 - 6M 9,15

10 - Afirma o Pe. Tomás ALVAREZ, Guía al interior del Castillo. Lectura espiritual de las “Moradas”, Monte Carmelo, Burgos 2000, p. 32: “Sim, é espontânea essa evocação do grande filósofo grego. Ele não apenas captara a consigna pragmática do oráculo de Delfos -“conhece-te”- mas havia-lhe dado uma versão profunda, próxima do evangelho de Jesus. A um dos seus discípulos prediletos, Alcibíades, Sócrates lhe explica que para conhecer-se a si mesmo não é suficiente conhecer o seu corpo, deve conhecer a alma de Alcibíades. E não conseguirá conhecer a sua alma, se não conhecer essa faísca de divindade que nela existe”

11 - Edith Stein em seu escrito Potenz und Akt (ESW XVIII), p.90 afirma: “Viver espiritualmente significa, ainda, ser ciente deste movimento, ser transparente para si mesmo, estar consciente de si mesmo e tal vez do outro”. 

12-  Pedro CEREZO GALÁN, La experiencia de la subjetividad en Teresa de Jesus, em La Recepción de los místicos Teresa de Jesus y Juan de la Cruz, Salamanca 1997, p. 171.

13 - 1M 2,9

14-  Cfr. por exemplo: V 40,6; C 28, 11. Também, em referência a Cristo: C 28,2

15 - Cfr. 1M 1,1

16 - V 13,15 (O negrito é meu) Esta mesma importância aparece destacada em: V 15,2-3.8; 1M 1,2

17 - P. CEREZO, a.c., p. 203, afirma: “Numa época, de resto egoísta e secularizada, onde o homem, qual novo Narciso, encontra onde quer os vestígios da sua própria imagem até perecer afogado no labirinto de intermináveis espelhos, Teresa de Ávila descobria aquele outro espelho interior, polido de silencia e anseios, aonde a imagem transcende-se a si mesma no seu original. Era o requebro mais elegante, a ironia mais fina que poder-se-ia imaginar contra o mero humanismo. Porque toda projeção de si mesmo tem um curto rádio, ou se extravia em infinitas ilusões –humanas, demasiadamente humanas, multiplicados fetiches de si mesmo-, não fosse projetada sobre ela a ânsia viva ou o desejo transfigurado de um Deus maior do que a nossa miséria e mais forte do que a morte” (o negrito é meu) 

18 - É a atitude continuamente manifestada por Teresa em sua visa após a sua definitiva conversão; (cfr. V 3,5: “... me fizeram compreender as verdade que entendera quando menina: a inutilidade de tudo o que há no mundo, a vaidade existente neste, a rapidez com que tudo se acaba. Passei a pensar e a temer que tal vez fosse para o inferno, caso morresse naquele momento”. Cfr V 15,11: “que tudo (o criado) era nada”). Nessa mesma dinâmica expõe João da Cruz o início de todo processo espiritual (cfr, CB 1,1)

19 - 1M 2,13 20 Sobre o tema do conhecimento próprio em Teresa não existe muita literatura. Tive a oportunidade de escrever sobre o tema em relação com o Livro da Vida: F. J. SANCHO FERMÍN, El conocimiento de sí em la meditación teresiana, em Id. (coord.), La meditación teresiana, CITeS-Universiad de la Mística, Ávila

20 - 12 (2ª ed.), pp. 51-90. Também a intervenção de Elisabeth MÜNZEBROCK, La importancia y relevancia del conocimiento de sí en el proceso espiritual de Teresa, a la luz del Libro de la Vida, en F.J. SANCHO – R. CUARTAS (dir.), El libro de la Vida de Santa Teresa de Jesus. Actas del I Congreso Internacional Teresiano, Monte Carmelo-Universidad de la Mística-CITeS, Burgos 2011, pp. 397 ss. 

21 - Cfr. 1M 1,1

22 - 1M 1,1

23 - 1M 1,2 

24 - 4M 2,5

25 - 1M 2,8 (o negrito é meu)

26 - 1M 2,11

27 - F 2,7

28 - V 13,2

29 - 4M 1,2

30 - 6M 4,11

31 - M epílogo 3

32 - 1M 1,1

33 - 1M 2,3

34 - 1M 2,4

35 - 1M 1,1